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No caminho das trevas

Por Abdon Marinho

Abdon Marinho.
Abdon Marinho.

Não aleitei só uma vez o triste caminho que o Brasil se põe a trilhar no que se refere ao justiciamento de pessoas pela população e sobre a falta de respeito pelos direitos humanos, urbanidade ou civilidade.

Não arrisco dizer que chegamos ao fundo poço pelo simples fato de possuirmos uma capacidade imensurável de piorar.

O que dizer ou como qualificar o assassinato de uma dona de casa por que fora acusada, sem nenhum indicio ou prova de bruxaria? Como justificar ou entender que alguém vá a estádio de futebol, arranque um vaso sanitário e o atire de uma altura de mais de 30 metros sobre as pessoas lá embaixo sabendo com certeza que iria matar quem fosse atingido?

Pois bem, estes dois fatos, difíceis de acreditar, aconteceram no espaço de menos de 24 horas no Brasil. Nação que se orgulha de seu caráter ordeiro, pacifico, de ser boa anfitriã, de ser a sexta economia do mundo, de receber milhares de pessoas para copa do mundo de futebol que acontecerá daqui a pouco mais de 30 dias.

O Brasil é um país que acredita em bruxaria a ponto de um boato, sem qualquer fundamento, levar pessoas a perseguirem e lincharem uma mulher por suposta prática? Voltamos aos tempos da caças às bruxas em que qualquer um podia ser acusado da pratica deste oficio, ser encaminhado ao inquisidor e obrigado, sob tortura, a confessar tudo fez e o que não fez?

Pois bem, no caso presente é até pior – se é que é possível haver piora em tal situação –, ao menos naqueles tempos as pessoas acusadas de bruxaria eram submetidas a algum tipo de julgamento, tinham a chance, ainda que remota, de conseguir alguma clemência. Aqui, o boato desencadeou logo a condenação e cumprimento da pena: Morte por espancamento. Há motivo para algum orgulho?

Na última vez que alertei para a gravidade de acontecimentos como estes foi quando um grupo de taxistas e populares promoveram a tortura e morte de um adolescente de 14 anos, na periferia de São Luís-MA, durante uma tentativa frustrada de assalto, o resto do grupo menores infratores conseguiu evadir-se este que não teve êxito na fuga acabou por perecer. Isso em pleno Domingo de Páscoa.

A morte deste jovem de 14 anos – não sei se possuía ou não outras passagens –, só foi falado uma manhã. A maioria das pessoas deu de ombros, resignados e apoiando a ação dos linchadores, muitos, inclusive, se manifestando nos meios de comunicação que era apenas “um bandido a menos”.

Acontece que não se tratava de um linchamento – ainda que atitude por si só seja terrível –, o que é grave no momento que vivemos é vermos os cidadãos de bem e outros nem tanto assumindo o poder de Estado, chamando par si a responsabilidade pela punição dos malfeitores, julgando, condenando e executando as penas. Assusta muito também é a

rotina de naturalidade com que estes fatos vem ocorrendo de norte a sul do país, a banalidade como a vida humana é tratada.

A sociedade brasileira precisa ficar atenta para o fato de que o Estado, com todo o seu aparado, com todas as garantias oferecidas no curso de uma instrução processual, quando funciona de forma correta, ainda assim erra. A sociedade quando se investe do poder do Estado corre muito mais risco de errar. Isso, sem contar que não é papel do cidadão chamar para si essas responsabilidades.

A nossa responsabilidade é exigir das autoridades estatais que cumpram bem seu papel, que revertam a situação de falência que o Estado brasileiro se encontra. O nosso papel é saber escolher os melhores representantes, para que faça leis que atendam as nossas necessidades, que dêem fim a cultura de impunidade, que tenhamos um executivo que garanta os serviços mínimos aos cidadãos. O que nos cabe é cobrar dos aplicadores da lei celeridade e eficiência na sua aplicação.

O Brasil não pode continuar com esses números indecorosos de violência urbana e rural, em que um cidadão de outros países, até menos desenvolvidos que o nosso, tenham mais chance de sobreviver que os cidadãos brasileiros. Não podem continuar com uma polícia que não consiga apurar todos os crimes, um ministério público que não os converta em processos e uma justiça que não julguem e puna os culpados.

A ignorância que levou a tortura e assassinato de uma inocente – e ainda que fosse culpada, não justificava por que nada justifica que os cidadãos assumam o poder estatal – representa a completa falência do estado brasileiro. Se a barbárie impera como se não tivéssemos mais um Estado é chegada a hora da sociedade entrar em reflexão sobre o futuro que a aguarda.

O evento primitivo que levou a morte essa cidadã brasileira, que como todos nós, pagadores de impostos, não significa apenas que o Estado, voraz arrecadador de impostos, não consegue mais existir e garantir um mínimo de segurança a quem quer seja, significa, também que qualquer de nós podemos ser vítima deste tipo de violência. Ontem foi o falso boato de que a senhora seria uma “bruxa”, amanhã pode ser uma acusação que qualquer outro é um pedófilo, um assassino e aí, sem qualquer apuração, sem qualquer processo, será levado ao linchamento e a morte. O país caminha para isso, para uma volta as trevas. Não nos assustemos se começar haver vizinhos motivados pelos mais variados motivos, inclusive a inveja, como já vimos muito, começarem a denunciar seus desafetos. Por que não? O que separa isso do que aconteceu com aquela cidadã do Guarujá/SP? Nada. Foi apenas um boato que fez com que a turba a matasse.

Um dos assassinos – muitos tem as mãos sujas de sangue, direta ou indiretamente – disse candidamente que “nada mais podia fazer”. Revelando a banalidade do que vale uma vida humana.

Aqui, no Maranhão, não se tem notícia, sequer, se algum dos autores do linchamento do adolescente amarrado num poste e espancado até a morte no Domingo de Páscoa foi identificado. Tudo caminha para mais uma impunidade e fomentar mais atos como o praticado.

Daqui a um mês o Brasil será o centro do noticiário mundial, um país que mata por suspeita de bruxaria, que lincha adolescente, que mata vinte e sete vezes mais que muitos outros países.

Ah, as grandes festas serão em campos de futebol, esses templos monumentais, não deixa de ser surreal que um dos crimes noticiados esta semana tenha ocorrido com o uso de um vaso sanitário de um estádio. É, as coisas caminham mesmo para o banheiro.

Abdon Marinho é advogado eleitoral.

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